Dom Emanuel fala sobre a quaresma e sobre a Campanha da Fraternidade deste ano

(Conteúdo cedido ao periódico Diário de Caratinga e reproduzido aqui) Na quarta-feira de cinzas, cinco de março, a Igreja Católica começou um tempo chamado de quaresma. São 40 dias em que os fiéis católicos praticam atos de piedade, em busca de uma conversão do coração para melhor celebrar a Páscoa de Jesus.
Naquele dia, assim como em todas as comunidades católicas do mundo inteiro, também na igreja catedral, o bispo diocesano de Caratinga, dom Emanuel Messias, presidiu a eucaristia na chamada missa de cinzas, uma referência a um ritual antigo de purificação e perdão dos pecados, dando início ao período quaresmal e também à tradicional Campanha da Fraternidade, gesto concreto da Igreja no Brasil por ocasião da quaresma.
Para ajudar na compreensão de nossos leitores acerca desse momento importante para a Igreja Católica, dom Emanuel falou em entrevista, concedida através da assessoria de comunicação da diocese de Caratinga, sobre o espírito quaresmal e também sobre a Campanha da Fraternidade, que chama a atenção para as duras realidades do tráfico humano e do trabalho escravo.


O que é a quaresma? Em que ela se fundamenta?
Quaresmas é tempo propício de reconciliação. São Paulo nos exorta: “Deixai-vos reconciliar com Deus”. Ele ainda fala que é um tempo oportuno. De fato, a Igreja celebra estes 40 dias antes da Páscoa como uma preparação para uma vida nova com o Cristo Ressuscitado. É bom lembrar que antes da Páscoa ainda temos a Semana Santa, e a vida do cristão, embora seja simbolizada pela quaresma (40 dias simboliza a duração de sua peregrinação terrestre), não pode terminar na sexta-feira da Paixão. Nós caminhamos para a Páscoa do Senhor e nosso fim último é a Páscoa definitiva na glória do Pai, ressuscitados pela força do Espírito Santo de Deus.


Como os fiéis podem se preparar para vivenciar melhor o período quaresmal?
Nossa quaresma não pode ser vivida de qualquer maneira, nem nossa vida, pois a vida é um dom de Deus. Quaresma é tempo de profunda reflexão sobre a vida diante das exigências do evangelho. Jesus nos quer conscientes de nossa liberdade, pois “foi para a liberdade que Cristo nos libertou”. Nesse sentido, aponta-se a primeira das três obras de misericórdia, o jejum, que é um voltar-nos para nós mesmos, não num ensinamento ou enclausuramento individualista, mas para nos descobrirmos livres e maiores do que as coisas, sobretudo a comida e a bebida. Somos pessoas humanas, filhos e filhas de Deus, capazes de um domínio sobre nós mesmos e soberanos diante da natureza.


Como o fiel pode se beneficiar do jejum? Qual sua motivação?
Com o jejum nós nos fortalecemos para nos sentirmos obra prima de Deus não apenas com o domínio sobre as realidades temporais, mas, sobretudo, diante dos apelos ilusórios e levianos do mundo. O jejum nos faz voltar sobre nós mesmos para descobrirmos que fomos criados para o outro. A Bíblia quando fala do jejum aborda diretamente um movimento de conversão na linha da justiça. Citemos apenas um exemplo do profeta Isaías: Deus reclama do jejum mal feito, jejum de comida e bebida, mas com desprezo pelo próximo. “É porque no dia do vosso jejum tratais de negócios e oprimis os vossos empregados. É porque ao mesmo tempo que jejuais, fazeis litígios e brigas e agressões impiedosas” (…) “Acaso o jejum que prefiro não é outro: quebrar as cadeias injustas, desligar as amarras do jugo, tornar livres os que estão detidos, enfim, romper todo tipo de sujeição? Não é repartir o pão com o faminto, acolher em casa os pobres e peregrinos? Quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne… (Is 58,1-9)


            A esmola também é uma obra de misericórdia. Como ela deve ser praticada?
esmola muito mais do que um trocado dado ao irmão necessitado amplia-se no dom maior que é a caridade fraterna, na linha do que acabamos de citar do profeta Isaías. Nós não somos uma ilha nem chamados a viver na individualidade, mas em comunhão fraterna. O despojarmos de nós mesmos nos enriquece e nos leva à partilha do nosso ser e do nosso ter. O outro é nosso irmão e somos chamados a ajudá-lo a viver com dignidade. Nós somos responsáveis pelos nossos irmãos, sobretudo os mais carentes. Basta lermos Mt 25, 31-46: “Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, enfermo e me visitastes, estava na cadeia e  viestes ver-me (…)”.


Neste período também se intensificam as orações. Ela também é uma obra de misericórdia? Como se relaciona com as outras duas?
Se o jejum se refere, primeiramente, a nós mesmos e a esmola diretamente aos irmãos carentes, a terceira obra de misericórdia, lembrada  por Jesus em Mt 6,1-6.16-18, se dirige diretamente a Deus. É, portanto, a oração. Nela reconhecemos que somos pecadores e somente Deus é santo, somos criaturas e Deus é o Criador, somos miséria e Deus é a misericórdia. A oração é a busca da intimidade com Deus. É um lembrete de que “tudo é nosso, nós somos de Cristo e Cristo é de Deus”. A oração nos fortalece para as lides de cada dia, nos faz entrar na intimidade de Deus e descobrir seu projeto de amor sobre cada um de seus filhos e filhas, sem acepção de pessoas.

Jesus nos lembra, no texto acima citado de Mt 6, que estas obras de misericórdia devem ser feitas na simplicidade do anonimato. Só devem ser vistas por Deus que vê o que é feito no oculto. Quem as realiza para aparecer “já recebeu a sua recompensa”.


E a conversão?
Para terminar nossa palavrinha sobre a Quaresma convém lembrar que o principal é o movimento de conversão que nos deve levar à busca do sacramento da penitência, para que livres dos nossos pecados possamos fazer um verdadeiro encontro pessoal com o Cristo ressuscitado.


O que a Igreja propõe com a Campanha da Fraternidade deste ano?
Sobre a CF 2014: “Fraternidade e tráfico humano” com o lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” temos que dizer que oprimir o irmão é um pecado grave e em muitos casos um crime hediondo. Vou dizer pouco, pois a entrevista está ficando longa. A Igreja suscita este tema, porque ele é assustador e desconhecido da maioria das pessoas. O que é o tráfico humano? É aliciar pessoas para um trabalho dentro ou fora do país com promessas ilusórias de uma vida melhor. Geralmente, a pessoa é convidada a um trabalho com ótimo salário, o primeiro já é, muitas vezes, adiantado para a família e a pessoa se encanta com a promessa e aceita. O que acontece? A pessoa já chega no local de trabalho endividada, pois o primeiro alto salário já foi “dado” à família. Logo que a pessoa chega ao local do trabalho, os traficantes tomam-lhe os documentos pessoais e já lhe apresentam a dívida contraída, que nunca poderá ser paga. Se é no Brasil, os documentos de identidade, se é no exterior, o passaporte. A pessoa se torna escrava na total impossibilidade de reagir. Caso queira fazer coisa parecida é amedrontada com retaliação inclusive aos familiares.


Que exemplos o senhor pode citar?
No Brasil, jovens e adultos são levados para as grandes fazendas ou indústrias clandestinas e vivem numa situação de escravidão. Para fora do país os traficantes costumam seduzir as jovens com conversas agradáveis dirigidas também aos familiares que acabam cedendo por causa do fascínio das promessas. Na Europa e em outros lugares as jovens descobrem que foram enganadas e levadas para a prostituição, numa situação constrangedora e desumana. Já saíram desta forma do país mais de 75.000 mulheres. Os sonhos das vítimas do tráfico sempre terminam em pesadelo, numa ida sem retorno.


Qual é a raiz do problema?
O fundamento do tráfico humano é o “deus dinheiro”. Os traficantes não adoram a Deus, mas ao dinheiro, o lucro desonesto e vil, e desconhecem o que é dignidade humana, o que é liberdade e não dão nenhum valor à vida, pois tudo é submetido ao lucro.  Com este pensamento, o assassinato é feito calculado e friamente, como é o caso do desmanche. Ninguém imagina, mas tráfico de pessoas é o terceiro negócio mais rentável do planeta, só perdendo para o tráfico de drogas e o contrabando de armas. Ele movimenta no mundo em torno de 32 bilhões de dólares por ano. E anda crescendo assustadoramente o número de vítimas do tráfico de pessoas para a exploração sexual, ou para o trabalho, em condições semelhantes à escravidão.


O falou de desmanche. De que se trata?
Se a gente olha no dicionário, o primeiro significado é: “ato ou efeito de desmanchar (-se); o segundo é: “oficina onde veículos roubados são desmontados para fins ilícitos”. Este é o exato significado de “desmanche” para o trafico humano. Atenção! Pasme! Os traficantes compram bebês por preços exorbitantes levam para os países ricos e os bebês são desmanchados literalmente. Os órgãos são vendidos para salvar, através de transplantes, as criancinhas, filhas de pessoas ricas. É inimaginável! Mas o que manda é o “deus mercado”, o lucro, o dinheiro. Se você acha que isto é coisa nova, eu termino dizendo que tenho conhecimento dessa barbárie, há mais de trinta anos.


Qual é então o objetivo da Igreja com essa Campanha?
O objetivo geral da Campanha da Fraternidade deste ano é identificar as práticas de tráfico humano em suas várias formas e denunciá-las como violação da dignidade e da liberdade humanas, mobilizando cristãos e pessoas de boa vontade para erradicar este mal com vista ao resgate da vida dos filhos e filhas de Deus. O que a Igreja quer é conscientizar a população, não apenas católica, mas o conjunto dos brasileiros todos. A igreja está promovendo o debate na sociedade não para pessimismo (em consequência dos tristes dados), mas para tomada de consciência. A ideia da Campanha é promover a discussão e a divulgação do tema, utilizando-se da mídia, das escolas e dos espaços públicos.


O que será feito para isso?
Todo ano, ao lançar a Campanha da Fraternidade, a equipe responsável, em âmbito nacional, já propõe alguns objetivos específicos. Entre os principais para este ano, podemos citar a identificação das causas e modalidades do tráfico humano e dos rostos sofridos por esta exploração; a celebração do mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, sensibilizando para a solidariedade e o cuidado com as vítimas dessas práticas; a conversão que conduz ao empenho transformador desta realidade aviltante da pessoa humana; as denúncias às estruturas e situações causadoras do tráfico humano; a promoção de ações de prevenção e de resgate da cidadania dos atingidos; e a reivindicar, aos poderes públicos, políticas e meios para a reinserção das pessoas atingidas pelo tráfico humano na vida familiar, eclesial e social.
Em nossa diocese, estamos empenhados na formação de todos os fiéis, através da capacitação das lideranças, para a compreensão do tema, a fim de ajudar na identificação dos eventuais focos deste terrível problema em nosso meio e da coragem para as denúncias, únicas formas de combate.

+ Emanuel Messias de Oliveira - Bispo diocesano de Caratinga

Fonte:http://www.diocesecaratinga.org.br/dom-emanuel-fala-sobre-a-quaresma-e-sobre-a-campanha-da-fraternidade-deste-ano/

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