MISERICÓRDIA

Não há, e nem pode haver, cristianismo sem misericórdia. Mas o que é mesmo a misericórdia? É essa atenção que faz com que voltemos o nosso olhar para os que sofrem, os abandonados, os adoecidos? É a disposição sincera para o perdão, mesmo que já tenhamos perdoado outras tantas vezes? É o cultivo cuidadoso de nossa sensibilidade, de nossas fontes de compaixão, solidariedade e brandura? É o alargamento de nossa capacidade de amar, mesmo ali onde a experiência passada recomenda cautela? É um transbordamento que excede toda prudência? É certamente tudo isso e é mais ainda.
A misericórdia é de tal maneira um traço cristão que, quando ausente ou mesmo escassa, já não estamos em terreno cristão, já não se pode mais falar de cristianismo. Talvez a misericórdia seja o tesouro oculto do cristianismo. A encarnação, essa celebração da humanidade, de tudo o que ela comporta de miséria e grandeza, é o sinal de que há um traço divino, uma fagulha divina mesmo ali, sobretudo ali, onde não suspeitamos.
Não somos deuses, mesmo que tenhamos tentado e que continuemos a tentar. Somos cercados por limites que todos conhecemos e que zombam da nossa autossuficiência, do nosso orgulho. Somos frágeis, nenhuma fortaleza nos protege. Somos, não poucas vezes, inimigos de nós mesmos.
À vista disso, à maneira da raposa que se afasta das uvas, somos presa fácil do pessimismo, do descrédito na condição humana. Passamos a ser hábeis na descrença ou na destruição, céticos em relação a qualquer virtude e chamamos a nós mesmos de experientes.
Num e noutro caso, já não somos cristãos porque já não somos misericordiosos. A misericórdia vem dessa alegria mais profunda, desse chão estabelecido por Cristo, que tornou divina a causa humana, mesmo se afrontada, vilipendiada, ameaçada. Somos feitos uns para os outros, educamo-nos mutuamente. Somos, como diz São Paulo, destinados ao amor.
Misericórdia para com os nossos irmãos, e irmãos todos somos, e misericórdia para com nós mesmos todas as vezes, e são tantas, onde o orgulho ou o cinismo nos distraem da vida. Misericórdia para com cada um de nós, sempre que, distraídos da solidariedade e do amor, julgarmos impiedosamente. Misericórdia para com nós mesmo sempre que a dor alheia parecer justa ou merecida.
Misericórdia para com nós mesmos sempre que nos esquecermos que a encarnação é, uma vez mais, a celebração da vida, o cuidado onde a dor prevalece e a revolta ali onde as variadas formas de exclusão insistem em aviltar o humano.
E é da misericórdia, esse outro nome do amor, que o papa  Francisco nos lembra, recorrendo a Santo Ambrósio: “Onde se  trata de alargar a graça, Cristo lá está presente; quando se trata de exercitar o rigor, estão presentes apenas os ministros, mas Cristo está ausente”.

+ Aloísio Vitral - Bispo de Teófilo Otoni

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